A preservação do meio ambiente, para a vida na Terra, está entre as maiores preocupações e urgências do mundo atual. Historicamente, a relação entre a humanidade e a natureza tomou diversos caminhos. Alguns deles nos permitem renovar o olhar e encontrar outras perspectivas. É este o convite que a Vale e o Instituto Cultural Vale fizeram aos visitantes do Pavilhão do Brasil, na ExpoDubai 2020: reviver caminhos percorridos por diversas comunidades brasileiras, registrados por grandes nomes da fotografia. Nas imagens capturadas, a água molda a paisagem, conforma os cotidianos e conduz os caminhos da criação e da resistência pela perpetuação de saberes e identidades locais e coletivas.
A água é parte constitutiva na formação dos sujeitos, e por consequência de sua educação e cultura. A água configura os modos de existência – o trabalho, o morar, o comer, o deslocar, o repousar, o festejar, o viver e o morrer. A água brota no mar, no rio, no alforje dos viajantes, nas panelas das cozinheiras, nas lágrimas das crianças e dos velhos. As imagens apresentadas configuram o panorama documental daqueles que habitam as margens, e para além delas, espessam a base do que definimos como nação. São retratos do humano no mundo, protagonista em sua luta pelo cotidiano.
Boa visita!
O pensamento do homem popular, no mundo, corre como o curso de um rio. Os relevos e o percurso se impõem. Quedas, barreiras e brechas delimitam o campo de reflexão e prática que juntas avançam pelo leito cristalizado das ausências. Ao desvelar-se calmo, por detrás de um meandro, ou impetuoso, jorrando do alto de um desfiladeiro, o rio sempre urge, pois não sabe seu destino e reconhece os riscos em sua passagem. Líquido, preenche os espaços contornando as margens e estabelecendo os limites do mundo seco. Líquido, o pensamento popular, aglutina e absorve o que se apresenta em seu caminho. Corrói as margens, mesmo que conformado por elas, alterando o mundo à sua volta.
Assim como a água encontra seu caminho na experiência de caminhar, o homem popular, traça a vida a partir da bifurcação entre a presença e a experiência, e seu pensamento apresenta-se como um não saber que possibilita o encontro com a origem das coisas. Esse querer não contínuo suspende o tempo historicista, pois cada instante é o momento oportuno de originar. Com essa certeza, João Cabral de Melo Neto, finaliza seu poema O Cão Sem Plumas, expressando o ponto de inflexão entre vida e criação humana:
Nem tudo está dado, e a parte oculta da existência liga-se à esfera do impessoal, do que não lhe pertence, mas por outro lado pertence a um todo. Por isso, o homem popular não basta a si mesmo, e seu trabalho toma dimensões da escala do coletivo e da paisagem, em sua justa medida.
Por não estar preso ao campo das representações e do amontoamento de dados, por desconhecer seu destino, por não estar fora de si em sobrevoo, o pensamento popular é trabalho.[1] Responde à experiência com o exercício da reflexão, e em perpétua negação, dobra-se sobre si mesmo para significar a relação entre os sujeitos e o mundo, movimento da criação de saberes. Neste caso, estar no mundo significa pensar o mundo, pensar em si e pensar-se no mundo. A relação entre o sujeito, seu meio e o trabalho são a base do diálogo entre o real e a subjetividade. Ideia e prática são indissociáveis, e estabelecem a situação de crise, que impõe a tomada de decisão. É nessa peneira que se origina e se espessa a cultura.
O rio alimenta a terra. É para onde pendem os galhos e as raízes, para onde se dirigem as manadas e as caravanas. O pensamento popular, por se apresentar como a estrutura própria do pensamento, alimenta todos os grandes feitos, os grandes bordados, as pinturas heroicas, as cozinhas faustosas servidas em porcelana fina. Tudo se origina no popular, pois quem trabalha é o popular. Trabalho como pensamento ideal e prático. Assim, a cultura, origina-se no exercício do pensamento, disruptiva, incontinente, insuprimível, bem como a dimensão humana da vida.
Por fim, o pensamento popular é trágico, pois sabe da morte. A relação entre o homem popular e o mundo o definem como sujeito trágico, pois é ambivalentemente ciente da responsabilidade que lhe cabe sobre o mundo, e sua condição incontornável de ser finito. Saber a morte é saber a paisagem, o outro e o eu presentes. Tal qual o funâmbulo, engendra na corda sua existência: tudo abaixo dela é precipício, e o equilíbrio para chegar do outro lado está em cada girar da roda do monociclo e no contrabalanço da sombrinha que nunca apararia a possível queda, pois quem está na corda bamba do pensamento, sabe que o único real é a queda, prenunciada no próprio peso de quem, pelo truque, a ludibria.
As imagens que se abrem, neste instante, para o visitante, transpiram, do momento capturado, a experiência do homem popular em sua epopéia existencial. Intencionalmente, as imagens retratam os sujeitos que habitam o Brasil. Em seu cotidiano, preparam o sustento, banham, festejam os mais diversos símbolos e sentidos, comungam. Sobretudo, estabelecem com a paisagem um modo original de vida. Pela abundância ou pela escassez, expressam em gestos, objetos, percursos e encontros, a impermanência de seu pensamento e de seu físico, isto é, a suspensão da experiência que direciona todos os seguintes, como numa reza, que é sempre única na boca de quem a proclama. Não são imagens de fatos dados, mas contas de um longo fio que se tece e destece, significando e unindo tempos e espaços.
A condição humana é revelada pela consciência de que, a todo instante, somos tocados pelo mundo. Essa condição produz, organiza e confere autenticidade a nossa subjetividade. A forma que nos relacionamos com os outros – todos os outros – é produto dessa experiência. O lugar onde habitamos, a paisagem que nos contorna nos imprimem ânimos e, antes de tudo, se apresentam como célula mater. A experiência sensível precede todo conhecimento elaborado. Este é fruto posterior à relação direta dos nossos sentidos com o ambiente.
A profunda relação com o que nos cerca é o que também confere materialidade à ideia de uma gênese. Não podemos nos isentar de dar sentido, de criar. Tudo está à espera do triunfo de dizer alguma coisa. Da relação simbiótica com o mundo, nascemos. As coisas nos formam, organizam nossos gestos e desejos, nossa forma de sentir e responder aos diferentes estímulos. Tudo depende de onde estamos, de onde pisamos. E, por consequência da densidade das matérias que as nossas mãos alcançam.
Na experiência com o mundo, com as matérias originais, entendemos desde cedo o lugar da divindade. É sempre num despertar violento que essas grandezas nos assolam com a percepção de sua insubordinação. Mesmo pequenos, o desejo de conhecê-las e controlá-las move e condiciona a nossa existência. Cheios de sentidos, partimos em direção ao que nos toca, numa eterna ciranda, como se convém a uma existência dadivosa.
Do temperamento das águas, nos comprometemos a decifrar os seus mistérios. E comovidos, em estado de infância, mergulhamos na experiência, ausentes de saber e abertos às novas possibilidades de sentir e devolver. Classificamos suas qualidades e alturas para dar nome a encantados e santos e dividimos entre eles, poderes em bocados bem cuidados, a fim de não desagradar a ninguém e poder contar com cada um à medida que for necessário.
Devoção é sacrifício criativo, criação de mundos. É pôr bandeira, pena, vidrilho no lugar onde falta vida, é semeadura de sentido. Arte de preencher oco. Partimos ao encontro das águas alegres, para dar fim às nossas mágoas. Partimos ao encontro dos deuses que se afogam e renascem; que se encarnam em bicho; dos nascidos das profundezas nunca vistas e que choram em determinada lua. Ou dos -simplesmente- alheios a tudo. E a estes somos temerosos, quando lembrados, por uma fração de tempo da nossa distração roubada, nas brincadeiras de boca de noite.
Festejo é devoção – síntese elaborada de toda construção coletiva fundada na experiência que se desdobra em profusão criativa. É o ato de celebrar que nos aponta formas de lidar com o intangível a partir do que temos. Nos apresenta ao mundo como inacabado, à espera das invenções traidoras de tudo que se pretende infinito.
Envoltos da aura de quem entra no momento exato, própria da iminência do fim, carregamos o corpo do universo em prato raso e fino, com muito menos da destreza dos acrobatas e convictos de que podemos, não titubeamos. Embriagamos.
Aos deuses se anima e muito mais do que proteger, lhes interessam fazer parte. Destemperados que são, inundam soterram os corpos – os nossos – de tanto não caberem em si. Consomem tudo que vêm pela frente, porque festejam sem precedentes. É sempre a primeira vez. E mesmo que deixem marcas, as ignoram, porque é do agora que falam.
Por sermos pequenos e fugazes, pó de argila, cantamos para que se alegrem, e os alimentamos para que se apaziguem por alguns instantes. Nesse meio tempo de eternidade, dançamos para os grandes, despertando em nós algum tipo de força que nos tire da vida ordinária. Criamos o chão da beleza.
Quando dizemos sujeito e paisagem já assumimos uma separação: de um lado, o sujeito, do outro, o objeto. O sujeito é, então, o subjectum, o subjacente, aquele que subjaz àquilo que jaz, que descansa em si. Uma vez instituído o sujeito como o fundamento sobre o qual tudo repousa, as coisas, os seres, o mundo, enfim, tudo o mais que não é esse sujeito fundador é objeto.
A paisagem seria então um objeto apoiado num sujeito, dependente dele. Seria também um objeto sobre o qual o sujeito exerce uma ação, uma intervenção; ou uma superfície inerte e neutra sobre a qual o sujeito projeta seus sentimentos, valores e intenções. Eventualmente, a paisagem se tornaria objeto de contemplação in loco, ou numa tela, numa foto, num poema.
A essa interpretação conduziria a leitura apressada da frase de Fernando Pessoa[1], na nota preliminar do Cancioneiro: “Todo o estado de alma é uma paisagem”. Se triste, o sujeito representaria seu estado de alma como um lago morto; se alegre, como um dia de sol. A paisagem não passaria então de mera projeção dos sentimentos de um sujeito. No entanto, poucas linhas adiante, após admitir a existência em nós de “um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita”, o poeta assume que a consciência desse espaço interior é simultânea à do exterior. Temos então consciência de duas paisagens, uma interna e outra externa, que se fundem e se interpenetram, influenciando-se mutuamente: “nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo […] e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma”.
Se, ao invés da separação, quisermos nos referir à indissociabilidade entre sujeito e paisagem, seria mais adequado dizer sujeito-paisagem, sem conjunção, pois não se trata nem de relação de independência, nem de dependência entre os termos: sujeito-paisagem, com hífen, uma vez que esse sinal diacrítico não só une, mas também modifica o valor dos termos. Formamo-nos e modificamo-nos enquanto formamos e modificamos paisagens, e vice-versa.
No entanto, é mais fácil admitirmos essa fusão na palavra escrita do que nos convencermos, pelo pensamento, de que nós e a paisagem somos um só, embora nossa psique (ou nossa alma) não duvide disso e até mesmo deseje essa união.
A paisagem encarna bem essa vontade de unir o que está separado, ou o que o pensamento (ou certo modo de pensar) separou ao instaurar e aprofundar o divórcio entre o sujeito e o vasto mundo, cisão que os poetas (das linhas, da luz, das cores, dos sons, do movimento, da matéria e das palavras) e os pensadores-poetas se propõem a serzir.
A unidade do homem com o mundo se dá no nível do próprio corpo e “aparece em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem”[2]. “Não existem homens e, além deles, espaço. O espaço não é algo que se opõe ao homem; não é um objeto exterior e nem uma vivência interior”[3]. Simplesmente, somos aqui.
Quando se trata de paisagem, porém, ser aqui não significa estar preso a um lugar. A paisagem implica sempre um horizonte, um além, uma abertura para o mundo e um deslizar constante que não faz estância. A paisagem, nesse sentido, é um exílio ao qual somos conduzidos a cada deslocamento. Talvez seja a isso que Agamben[4] se refere ao dizer que a paisagem é inapropriável, assim como o corpo e a língua.
A paisagem é inapropriável não por estar distante, fora do alcance das minhas mãos mas, ao contrário, por estar excessivamente próxima, por me ser muito íntima, por me constituir, do mesmo modo que meu corpo me constitui, sem que eu possa dele me livrar toda vez que ele me impõe uma necessidade que não partiu de uma deliberação minha. O meu corpo se torna então estranho a mim, impedindo a distinção clara entre “o voluntário e o involuntário, o próprio e o estranho, o consciente e o inconsciente”[5]. O mesmo se dá no gesto poético, quando a língua, dominada e tornada estrangeira pelo próprio escritor, passa a ser estrangeira a ele próprio, dominando-o.
A paisagem nos é, portanto, familiar e estranha ao mesmo tempo, já que, por ser tão íntima, a ela nos entregamos e nela nos perdemos.
A paisagem nos habita como um fluido, de um modo pervasivo (a pintura de paisagem o comprova com as amplidões de água e céu). Mas ela não é apenas um meio, ela não se confunde com o “meio ambiente”. Por nos constituir como sujeitos, ela nos move e comove; desnorteia e acolhe; repousa; perdura; jaz.
O mar se presta como exemplo dessa fusão. Ele impregna toda a atmosfera, anuncia sua presença nos manguezais ainda distantes, na extensão dos canaviais, salga o melaço. Aguardente, inebria o menino Joaquim Nabuco: “Mais longe começavam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré… Durante o dia, pelos grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que se cozia o mel”[6]. Desde a primeira infância, deixa marcas que se impõem definitivamente às experiências do homem adulto: “Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembra-me dele, tenho sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou diante de mim, verde e transparente como o biombo de esmeralda, um dia que, atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, me achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e movente… Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu Kodak infantil, que ficou sendo para mim o eterno clichê do mar”[7].
A presença do mar é absoluta, fusiona os corpos, as coisas, confunde a razão: “Velhos calçamentos nublados de umidade tropical. Escadinhas descendo para a areia preta; com papéis, dejetos. Um silêncio como nas cidades do Norte. Aí estão jovens de jeans cor de carniça e malhinhas brancas, aderentes, sujas, caminhando rente à balaustrada – como argelinos condenados à morte. Uns mais longe na sombra quente contra outras balaustradas. E o barulho do mar, que não deixa pensar…”[8].
Na tradição chinesa, um dos modos de dizer paisagem é shanshui, montanha e água, constância e movimento, resistência e sujeição. Mas qual é o sujeito agente: a montanha que se opõe à água, ou a água que a modela, que conforma ao conformar-se? A água, mesmo a mais cristalina, turva as distinções. Ela é o solvente universal, e o mar, sina das águas, é o repouso dos seres em vertigem, que têm “o destino da água que corre”[9].
Imerso na paisagem, o sujeito já não comanda a ação, apenas aquiesce, serenamente. Ao sustar o pensamento, a paisagem, sobretudo a aquática, modifica não só o sujeito, mas também seus predicados: chega a adoçar o oceano. “… É assim que nesta imensidade afogo o pensamento: e o meu naufrágio é doce neste mar”, dizem os versos de Leopardi em L‘Infinito[10].
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