Quem sabe que vai morrer, ludibria a morte em vida. Acena, diz bom dia e até amanhã. O encontro é inevitável. Impõe a sina da escolha, da liberdade e do corpo desnudado. Há quem dance com ela em momentos relâmpagos que nos colocam em contato com o mundo e com nós mesmos. No ponto exato e congruente do possível choque, surge a máxima experiência: é quando a parte insondável da vida emerge, eixo vertical face a horizontalidade do cronômetro. Dançamos com a morte quando fazemos arte para inventar e torcer o cotidiano, quando jogamos, quando nos vestimos, quando nos maquiamos, quando sacralizamos e profanamos altares, quando organizamos as linhas do cotidiano e delimitamos o contorno da arena em que atua a crise trágica da revelação de que se morre todo dia um pouco.
Para negar o corpo sem vida é preciso encontrar esse ponto de tangência entre as coisas, mirar o reflexo e aceitar os “fatos reveladores”, que, como diz Michel Leiris, “esclarecem partes obscuras de nós mesmos, na medida em que agem por uma espécie de simpatia ou semelhança, e cuja força emotiva deriva de serem espelhos que guardam (…) a imagem mesma de nossa emoção”. Aceitar a parte obscura que nos chega é a única possibilidade de real consciência sobre nosso lugar no balanço de renovação que há entre os opostos – a vida e a morte, o bem e o mal, o bom e o ruim, o sagrado e o profano, o masculino e o feminino. Esse balanço mantém o fluxo necessário para a criação dos significados e dá, a quem sabe da morte, o poder de julgamento ético sobre as coisas. A lacuna presente entre os extremos é como um campo de batalha, onde tencionamos e significamos a vida; onde pendulamos desde nossa concepção.
Foi assim que a menina nascida em Leningrado, em ano de guerra, no dia 22 de fevereiro de 1945, passou a existir: Elke Georgievna Grunupp, Elke Grunupp, Melissa Vassiliki, Elke Evremidis…Elke Maravilha. Foi russa, alemã, mongol, mineira, branca, preta, vermelha, roxa, lisa, crespa, frisada, loira, morena de todos os lugares e de lugar nenhum. A cada dia, uma nova Elke, uma outra, uma desconhecida, mas sempre Elke, trágica; apenas Elke – única, com toda certeza. A impermanência, e não a indefinição, gerou amor e ódio de quem a assistiu pela TV; ou na rua, de quem foi confrontado com os próprios desejos. Elke propôs o encontro e, frente a frente, desvelou o que somos no insondável.
Recebeu cuspe na cara. Foi taxada de homem, mulher, travesti, bruxa, rainha, maldita, excessiva, extravagante, rebelde. Escolheu as coisas que foi, aceitou o balanço de vários mundos e assim escapou às definições restritas. Achou a tangência, o espelho do outro. Rejeitou a riqueza. Foi madrinha dos pobres e oprimidos, crianças a quem deu sempre nota máxima. Sintam-se beijados e arrasados, dizia. Foi santa dos garis, dos hansenianos, das profissionais do sexo, dos presidiários, dos homossexuais, dos velhos. Escolheu, de coração, as causas que apoiou sabendo que, de coração, na prática, é que o esforço do bem se torna político, fora do mar das ideologias e das panfletagens. Quem está no mundo é o mundo onde tudo cabe. Todos somos tudo, dizia Elke, santos, diabos, bons, ruins… o que escolhemos é o que se revela. Em um grande passo de mestre, Elke dançou com a morte e instituiu uma estética inovadora, presente em tudo o que criou, da casa aos palcos. Deu forma precisa e ciente à ética que propôs – um jeito Elke de pensar e estar no universo, incompleta, exatamente para dar espaço à polissemia necessária que o bailado dos afetos exige.
Elke toureou o mundo e a si mesma. Praticou o eterno “passe da beleza tauromáquica”, sobre a qual Leiris discorre[1]: dionisíaca, antagônica, desviante, ambígua, astuciosa, grave para si e para o outro. Foi além: ora touro, ora toureiro, instaurou o trágico em tudo que fez. Carregou em si a carga de perigo imprescindível para que a experiência se consolidasse como tal. Achou a lacuna e a preencheu – aqui é possível o movimento. Seja nos desfiles de moda, quando era a única a sorrir gorgonicamente sobre as passarelas (quem sorri, sabe da morte), vivificando o andar de manequim; seja pelas buzinadas emitidas junto ao painho Chacrinha, ou as controversas notas 10 presenteadas aos piores calouros para a fúria e descontrole de Silvio Santos; no vestir, no cinema, no teatro, no risco corrido nas ruas, nas boites, nas relações, no riso, por onde passava a brecha se abria como se abrem lábios: ser de outro tempo, outro mundo, outro.
E o que constitui essa brecha? O que define a ética Elke de ser? O que nos é legado? Elke escolheu o sacerdócio da amizade, colocando tudo de ponta-cabeça. Declamou seu desejo aos quatro cantos, por meio de várias bocas. Comeu, deglutiu e regurgitou uma mesa posta inteira. Em um poema caro à artista, Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, disse:
Há, nesses versos, a dimensão do impossível, e frente a ela, o sacrifício. O apelo à amplitude gozosa da vida, carrega consigo a necessidade de tornar sagradas as coisas que tocamos – entender a dimensão que deve ser posta à parte, compreender a falha como religião, no sentido de reler para delimitar a separação, dando ao outro, espaço para nos adentrar e apossar, já que por peripécia, o outro nos confere propriedade e desvela nosso ser. Assim como o filho é quem caracteriza o pai, mesmo jamais sendo o pai, o outro é quem nos permite ser no mundo. Morremos para que o outro nasça e, por revelação, venhamos conjuntamente à luz. Sacrificamos para apaziguar o deus-vizinho/interno, e retornar para o uso profano das relações. “A “amizade”, diz Agamben analisando a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, é “a des-subjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si”[2], ou seja, o amigo para tanto, precisa ser uma parte sacrificada de nosso próprio ser dentro do campo da com-divisão da própria existência. “E é essa partilha sem objeto”, continua Agamben, “esse com-sentir originário que constitui a política” em sua origem. Por essa razão, Elke foi guardiã da boa política do viver; entendeu a importância da amizade como arma e nunca se cansou de profetizar: Viver é pouco, o importante é conviver; viver com.
Elke pregou o amor. Colocou amor em tudo que fez. Distribuiu amor a todos a quem encontrou. Ciente de que só estamos prontos na morte, porque não há escapatória, destilou sua máxima em guisa de instrumento para encher a linguiça da vida: Eros anikate mahan, o amor é invencível nas batalhas – verso roubado do coro da Antígona de Sófocles, que sentencia aqueles que amam ao que há de mais vivo[1], incerto, arriscado e humano.
A exposição que oferecemos ao visitante não é biográfica. Elke afirmava que as biografias deveriam ser destinadas apenas aos grandes homens – Alexandre, o Grande, dizia. Dessa forma, aceitou na fronte o sol, fugindo das categorizações destinadas aos comuns, revelando o que parece, mas não é. Ela viveu todas as coisas a partir do concreto da vida e simbolizou-as pelo pensamento fruto da experiência – controlou com maestria o campo das representações. Assim, o conjunto é uma homenagem e um agradecimento pelo que Elke Maravilha nos legou em diversos campos da criação humana: na moda, na indumentária, na cultura de massa e popular, no teatro, na vida cotidiana, mas principalmente por nos ensinar a transformar ouro em palha, a despeito de qualquer certeza.