Já se passaram 50 anos desde que você deixou São Luís, rumo ao Rio! Agora, em 2025, faz mais 50 que sua voz de trompete imortalizou Não Deixe o Samba Morrer, dá para acreditar? Virou hino, como tantas outras canções de autores maravilhosos que você gravou! Nós, por aqui, ficamos tão orgulhosos de ver você ganhar o mundo!
Quando você aparece na TV, então, todo mundo se reúne para rir e chorar contigo; mão grudada no peito, entre beijos de amizade e amor! Não dá para contar as vezes que cantamos, dobrando sua voz, em coro, em alto e bom tom para todo mundo ouvir! Foi quase a todo momento, som de domingo, nas festas mais importantes.
Quando sofremos de amor, foi nos braços afetuosos da tua voz farta que choramos, vingamos, consolamos, peito apertado de esperança e ilusão. Quantas meninas não se viram mulheres ao descobrirem os teus segredos! Uma coisa é certa, teus hits embalaram 1001 namoros por aí! Você é uma romântica por excelência!
Boba, jamais! Loba! Inspiração para todas as mulheres que cotidianamente alimentaram o Brasil com o suor de seu trabalho, com a doçura dos seus sonhos de amor. Cada vez mais mulher, porque assim você quis!
Quando te víamos negra, no palco, para nós, tudo parecia possível! Sabemos que a luta não foi fácil. Você abriu caminhos e por isso podemos continuá-los com menos medo, mais desejo, cabeça erguida! Tua voz negra, até de olhos fechados, rasga, inflama, arde, faísca, queima nosso corpo todo!
Sim, é magia contagiante de todos os tambores, sejam eles de Crioula, Bumba-meu-Boi, das baterias de escola de Samba. Foi por isso também que o Maranhão sempre esteve em teu pulso! Você o representou com força, contando para aqueles que nunca pisaram esse terreiro, sobre as encantarias que habitam seu subterrâneo!
Teu som é uma viagem, não tem pátria, não. Embora você seja a mais brasileira das brasileiras, qualquer língua te ouve e aprecia.
Agora, agradecemos, pois sabemos da tua dedicação! Cada nota cantada, cada cintilo da tua voz foi dedicado. Teu som de estrela iluminou cada ouvido apaixonado por ti. Aceita esse carinho, que é do nosso melhor! Embora aqui te visitaremos, é para ti que tudo preparamos!
Obrigado, com todo o amor…
Conheci a Marrom no palco do Teatro Pujol, em 1974. Nossa amizade, assim como a admiração que sentimos uma pela outra até hoje, nasceu naquele mesmo instante. Na época eu estava começando a carreira artística e ela já impressionava o Brasil com sua voz grave e inconfundível. Assim que a conheci percebi que ela tem a generosidade como marca, o que foi determinante para que minha admiração por ela só aumentasse com o tempo.
Do começo de sua trajetória até os dias de hoje, a biografia da Marrom é marcada pelo sucesso. Não teve nada que ela fizesse que não fosse bem sucedido. As premiações foram inúmeras e o reconhecimento de seu talento veio de várias formas. Ela já recebeu um Grammy Latino e é multicampeã do Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Cantora Popular. Já foi homenageada pela Estação Primeira de Mangueira, nossa escola do coração, e como ela mesma disse, “nenhuma honraria poderia ser maior para uma artista popular”.
Ela já teve sua vida encenada em musical e filme. Cantou em mais de 30 países e é constantemente ovacionada por onde passa. Mas o que considero mais importante em tudo isso é que todo esse reconhecimento vem como resultado de sua generosidade, porque, quando canta, a Marrom está compartilhando o que ela tem de mais valioso, que é a sua arte, o seu talento, a sua voz. E isso tudo é entrega.
Ao transitar musicalmente por uma profusão de ritmos e gêneros, a Marrom compartilha com todos nós o talento que possui desde menina. Quando fala de amor, mas também de todos os sofrimentos, das tristezas, do trabalho, da luta da mulher e do povo que se identifica com as letras que canta, ela mostra que sabe ouvir e traduzir em melodia o que se passa na alma das pessoas. Isso é doação.
Quando a Marrom gravou “Quero Sim”, uma música de minha autoria em parceria com Darcy da Mangueira, esse também foi um ato de generosidade, porque foi com essa gravação que eu consegui pagar o financiamento do apartamento em que eu morava com minha mãe na época. Ela sabia disso e fez o que pôde para me ajudar. São coisas que a gente não pode esquecer.
Ter compromisso e se sentir responsável por melhorar o mundo que nos cerca também é um ato de generosidade, e isso a Marrom demonstrou muitas vezes. O maior exemplo foi a criação da Mangueira do Amanhã. Sempre que tem oportunidade ela contribui para a educação de crianças e jovens e para as mulheres da Mangueira. Isso jamais pode ser esquecido, porque a representatividade não deve ser apenas um discurso, ela precisa estar ancorada na realidade e traduzida em ações, e a Marrom sabe fazer isso como poucos.
A jovem maranhense que foi para o Rio de Janeiro para realizar o sonho de ser cantora e batalhou muito para hoje, merecidamente, ser considerada uma das mais importantes vozes da música brasileira, continua representando todas e cada uma de nós, mulheres negras, nordestinas, que lutam por dignidade e para conquistar o lugar que merecem.
A Marrom permanece sendo referência para todas nós porque faz de sua história um exemplo de luta, mas também de compromisso com as pessoas e de grandiosidade de caráter. Ela sabe ser irmã naquilo que de mais profundo existe nessa palavra, que é a solidariedade. Na hora que a gente mais precisa ela sempre está junto.
Alcione Nazareth sempre foi e permanece sendo uma voz do Maranhão, que canta o Brasil e arrebata a todos pelo repertório, pelo talento e pela generosidade.
Leci Brandão
São Paulo, fevereiro de 2025
COM AMOR, ALCIONE
— Afinal, o que é um sambista?… E mulher também pode ser chamada assim?
Este tipo de pergunta, por incrível que pareça, ainda anda por aí na cabeça de muita gente que não conhece o beabá do Samba – um aprendizado que exige vontade de saber, e nada mais. Antigamente, mesmo gente que escrevia livros, errava na definição, dizendo coisas assim: Samba é uma dança de negros; e sambista é quem frequenta o ambiente.
Diziam assim mesmo! Até que um afrodescendente importante, membro da Academia Brasileira de Letras, botou ordem na casa e resolveu o problema, definindo assim: Samba – dança popular brasileira executada com música em compasso binário, com acompanhamento obrigatoriamente sincopado; sambista – autor ou dançador de Samba. Chamava-se Antenor Nascentes o ilustre acadêmico. E certamente sabia que, mesmo naquele seu tempo, na passagem para o século XX, havia mulheres que compunham, cantavam e tocavam Samba. E não deixavam o Samba morrer.
Outra passagem da história da nossa música popular conta que, na década de 70, a iniciante Alcione Dias Nazareth, ao ouvir do músico e produtor Roberto Menescal um elogio à sua voz, seguido de um convite para ser lançada como sambista, deu-lhe a carinhosa resposta: “Não sou do Samba, não, moço! Eu não sou sambista!”.
Quem conta esta é o jornalista e escritor Leonardo Bruno, por acaso xará do maestro nosso parceiro no Maracatu do Meu Avô, imortalizado pela Marrom, em 1983. E a historinha está no gostoso livro Cantos de Rainha (Editora Agir, 2021).
Tinha certa razão, a filha do Seu João Carlos. Porque, no Maranhão, de onde tinha vindo para o Rio, ela já era conhecida como crooner (cantora de orquestra) e trompetista. E a resposta que deu fazia todo sentido. Pelo menos, para o autor destas linhas que, com toda a sinceridade, desde sempre, tem Alcione no mesmo altíssimo nível das saudosas Elizeth Cardoso e Leny Andrade, no Brasil, e Sarah Vaughan, nos Estados Unidos.
Ao recusar o rótulo de sambista, nossa grande intérprete procurava fugir de uma espécie de armadilha que o velho e persistente racismo brasileiro ainda usa até hoje: a do “lugar de negro”. Com essa arapuca criam-se mentirinhas que, muito repetidas, acabam tomando cor de verdades, fechando portas, interrompendo carreiras, matando vocações; como aconteceu com uma brilhante cantora lírica brasileira, na década de 1920.
Artista do gênero clássico, muito bonita e indiscutivelmente negra, num momento em que muita gente ainda via o Brasil como uma “Democracia Racial”, o que nunca foi, a artista despontava como um grande nome em sua especialidade. Assim, num concurso promovido pelo Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, conquistou uma disputada medalha de ouro, em decisão unânime de uma banca formada por sete renomados professores. Mas, além disso, havia um cobiçado “Prêmio de Viagem”, que a levaria à Europa e que ela não ganhou, por ‘não ter certo perfil’, como se disse na época.
Sempre muito elogiada e comparada a divas negras de seu tempo, vitoriosas, mesmo nascidas em países sabidamente racistas, nossa estrela não recebeu as honras que merecia. E terminou sua carreira como cantora popular, mas quase desconhecida.
Contamos esta história apenas como um exemplo, porque, como sabemos, nossa Rainha Alcione, mesmo com todo o amor que transmite e recebe, “domina relâmpago e trovão”. E por isto, não está nem aí, qualquer que seja o tipo de discriminação. Seu temperamento forte faz dela uma mulher poderosa, que até assume riscos quando o assunto é fazer o bem a quem merece, seja nos palcos e estúdios, seja na Mangueira do Amanhã, escola acima de tudo.
Assim, o Samba já levou Alcione e sua voz privilegiada a mais de 30 países. E, por ele, a filha de Dona Filipa já ficou na Itália por dois anos. Depois, fez uma temporada de vinte e tantos shows em Moscou e outras cidades da antiga União Soviética, em 1988. O convite partiu do Ministério da Cultura da URSS, em acordo com a Embaixada russa no Brasil. Segundo o conselheiro da embaixada e responsável pela excursão, em declaração à imprensa na época, “Alcione é a alma do povo brasileiro”.
Verdade pura! Sua galeria de medalhas e premiações acolhe, além dos Grammy, O Pensador de Marfim, concedido pelo governo de Angola; o diploma e a medalha de ouro da Sociedade Acadêmica de Artes, Ciências e Letras de Paris; e A Voz da América, concedida pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Sua Majestade Alcione, nossa Rainha, sabe que em certos lugares o Samba, raiz e tronco principal da música popular brasileira, ainda é discriminado como música “de preto, pobre e velho”. Ela sabe também que o fabuloso repertório do estilo bossa nova, que consagrou gente boa como Tom Jobim, João Gilberto, Menescal, Carlos Lyra, Nara Leão etc., tem também muito de Samba, como o Samba do Avião, Samba da Benção, Samba da Pergunta, Só Danço Samba etc. Só que, quando surgiu, era um estilo diferente de Samba: às vezes, só com piano, contrabaixo e bateria; não tinha cavaquinho, pandeiro ou tamborim; e, com esta novidade, trazia mesmo uma batida diferente. Mas não deixava de ser Samba!
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Tudo isto é dito e escrito aqui com muito respeito à Diversidade e ao gosto de cada um. Mas é também com a autoridade de alguém que se tornou compositor profissional há 52 anos, pela mão de Alcione, ainda em seus primeiros passos. E que escreveu, para ela, nesses anos, com diversos parceiros, e às vezes sozinho, letras e melodias para mais de 25 músicas em diversos gêneros e estilos, mas principalmente Sambas, sempre muito bem gravados. Tudo isto, integrando um coletivo de criadores musicais de altíssima qualidade.
Pois é… Como disse o embaixador da Rússia citado linhas atrás, “Alcione é a alma do Brasil”. E nós acrescentamos: no Brasil de hoje, Alcione é a imagem e a voz do Samba, porque sabe e pode cantar o que quiser, como quiser. O que o faz com muita classe. E com amor.
Nei Lopes
Rio de Janeiro, setembro de 2024
Alcione, cuja trajetória reflete a rica mescla entre a tradição popular, o estudo técnico e a busca por novas influências, é uma das cantoras mais emblemáticas da música brasileira. Nascida e criada em São Luís, cresceu imersa em um ambiente musical fomentado pelo pai, mestre João Carlos Nazareth, músico da banda da Polícia Militar. Além de incentivar o contato com os instrumentos, mestre João Carlos fez questão de ensinar aos filhos todo seu domínio musical.
Os primeiros contatos com a prática instrumental e as partituras deram à Marrom a sintonia com a técnica musical que moldou a voz que futuramente definiria sua identidade artística.
Outro aspecto marcante da formação de Alcione é sua conexão com as expressões populares negras, em especial sua vivência nas festas populares maranhenses, seja nos grupos de bumba meu boi, rodas de tambor de crioula ou nas ladainhas da Festa do Divino, em que Alcione se divertiu tocando clarinete, mesmo que nunca tenha sido imperatriz da festa, como sonhava. À audição maranhense somaram-se as mais diversas referências musicais.
Alcione cresceu ouvindo e se inspirando em grandes nomes da música brasileira, como Núbia Lafayette, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga, João do Vale e Jackson do Pandeiro. Ao mesmo tempo, se encantava com as vozes do jazz e do soul, como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, e se deixava levar pelo ritmo contagiante do soul e do gospel norte americano.
Essa mistura de sonoridades e estilos ajudou a construir a artista única que Alcione se tornaria, capaz de transitar com naturalidade entre o samba, o choro, o frevo, o bolero e até o jazz, sempre sem perder o sabor das suas origens.
Apesar de sua formação musical, Alcione nunca teve aulas de técnica vocal, algo que, para ela, não foi obstáculo.
“Aprendeu a cantar, cantando”, com a voz firme dos cantadores de boi, das rodas de samba e das festas de rua. Em suas interpretações, a carga emocional é sempre palpável, carregada de histórias de amor, dor e devoção que ela ouviu ao longo da vida, tornando cada canção uma verdadeira manifestação de sua vivência e de sua gente.
Alcione chegou ao Rio de Janeiro arrebentando a boca do balão. Já estava formada e sabia o que queria. Já carregava consigo uma bagagem musical rica, forjada no Maranhão, mas aberta ao mundo. Sua música, marcada pela mescla de estilos e pela presença constante das influências populares, a tornou uma das maiores intérpretes da música brasileira, capaz de emocionar e surpreender em cada nota.
À qualidade musical, somaram-se a consciência de seu lugar enquanto mulher preta. Ela soube desde o início preservar sua autonomia, mirando sempre em horizontes maiores. Se hoje o créu está na boca de todo mundo, é devido ao pioneirismo de Alcione.
Ao ser questionada por seu diretor musical sobre gravar Meu Ébano, Alcione respondeu: “Quem lhe disse que eu não posso cantar créu? Você não sabe das coisas que eu sou capaz”, reafirmando sua autonomia e capacidade de reinventar a música brasileira, num cenário em que mulheres, como nós, nem imaginávamos ter espaço para transitar.
Hoje, com 50 anos de uma carreira estelar, Alcione segue ativa e presente nos palcos do mundo, conquistando tanto o público jovem quanto os fãs que a acompanham há décadas. A Marrom é um símbolo de resistência, força e tradição, e sua voz continua reverberando a riqueza e pluralidade do povo brasileiro, sendo merecidamente coroada como uma das grandes vozes do país, com uma trajetória que ultrapassa preconceitos, fronteiras e gerações, sem nunca perder as raízes e a sabedoria de sua origem.
Deyla Rabelo
São Luís, janeiro de 2025.
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Você carimbou o samba
com o balanço das palmeiras
onde o poeta cantou.
(O poeta em sua sábia sabiá).
Trouxe Tambor de Crioula
e fez o samba bumbá;
fez a Mangueira ao cuxá
nos meninos do amanhã.
Nossa cara de Caribe,
nossa África amazônica.
Você trouxe esse renovo
ao carinho carioca;
na cidade que se dá
como um rio amansa o mar.
Todos louvando esse love
na terra da Bossa Nova.
Passarelas e passistas,
tamborins e pandeirões –
paixões a perder de vista.
Tantos mimos, tanta fé
em dois povos que se abraçam
pela voz de uma mulher.
E o Brasil lhe abençoou na terra do Redentor.
Salgado Maranhão, poeta e compositor
Rio de Janeiro, outubro de 2024
Olhar para os mais de 50 anos de carreira de Alcione é vislumbrar uma trajetória que nunca andou em linha reta. É mirar um percurso cheio de curvas, de mudanças de rota, de bifurcações inesperadas. E as escolhas nunca aconteceram pela bússola do caminho mais fácil e sim pela certeza de que aquela era a direção mais adequada à sua verdade, aos seus desejos, ao seu tempo. Nessas cinco décadas, o roteiro inesperado conjuga a sambista que sobe as ladeiras do Morro de Mangueira, a amante do bolero que canta nos recantos chiques de São Paulo e a brincante que gira ao som das matracas do bumba-meu-boi. É a artista que nos emociona com seu “Ne me quitte pas” e, em seguida, nos diverte com “Não posso dar mole senão você créu”, sem que ninguém estranhe a mudança repentina de estação. Tudo isso é Alcione.
Essa “maranhoca” uniu Rio de Janeiro e São Luís, feijoada e arroz de cuxá, surdo de primeira e tambor de crioula, água de coco e guaraná Jesus. Produziu o melhor cruzamento das folhas secas de Nelson Cavaquinho com as palmeiras-onde-canta-o-sabiá de Gonçalves Dias. Em seus shows, junta brasileiros de todos os tipos, com madames e tchutchucas se abraçando para cantar a uma só voz: “Não posso mais alimentar a esse amor tão louco, que sufoco!” – e nessas horas não importa o tamanho da conta bancária de cada uma. Essa versatilidade é o retrato perfeito de uma cantora que foi gestada nas noites de Copacabana, nas boates que eram o ‘crème de la crème’ da badalação carioca nos anos 60 e 70. Para um crooner, é preciso colocar o público em primeiro lugar e entregar o que ele quer ouvir. A Marrom entrega isso e muito mais.
Viajar pelo seu repertório é observar como se construiu a estreita conexão entre a artista e o público feminino. Alcione foi uma das primeiras intérpretes a decantar um amor sensual, nada platônico: o carnal, que exala desejo e leva pra cama, sem culpas.
É senhora de si, dona do próprio corpo, ciente de suas vontades e disposta a realizá-las. No início da carreira, já cantava: “Eu sou maneira, sou de trato, sou faceira / Mas sou flor que não se cheira / É melhor se prevenir pra não cair / Sou mulher que encara um desacato / Se eu não devolver no ato / Amanhã pode esperar”. Em 2024, ela continua mandando a letra: “Baixe o tom da tua voz / Que eu não tolero lero-lero / Muita marra de feroz / Na minha vida eu não te quero”.
Acompanhar as letras que ganham vida na voz da Marrom é também entender um pouco sobre a evolução da emancipação feminina na sociedade. Nos anos 80, as letras retratavam em geral uma mulher “à moda antiga”, mais submissa, sujeita aos caprichos do homem. Aquela que assume “o papel de culpada bandida” e que, ao ser perguntada sobre quando vai deixar aquele homem que a domina, responde: “nem morta!”. Aos poucos, as canções foram acompanhando o novo olhar feminino sobre os relacionamentos, da mulher que dá o troco, é decidida e que não aceita desaforo. É quando surge a personagem que arranja “um novo amor só pra se distrair” e que expõe seu desejo sem constrangimentos para o alvo: “é você, meu ébano, é tudo de bom”. Caça e caçadora.
Artista que pegou um Ita no Norte para desembarcar no Sul, mal sabia que era ela quem traria pra Cidade Maravilhosa seus encantos mil. Assombrou o público com seus sopros e com sua voz, colorindo o samba com todas as tonalidades possíveis. E se tornou patrimônio da cultura nacional. O verde e o amarelo que me desculpem, mas o Brasil é Marrom.
LEONARDO BRUNO, jornalista e escritor
Rio de Janeiro, novembro de 2024
Lá em Mangueira, o toque do tambor é único. Não é licença poética ou um modo apaixonado de se declarar à Estação Primeira. Diferente de todas as outras escolas de samba, que fazem a marcação do ritmo da bateria com dois surdos, o de primeira e o de segunda, a Verde e Rosa desfila apenas com o surdo de primeira. Maior e mais grave dos instrumentos do ritmo, o surdo um produz um rufar que se conhece ao longe, que bate sem resposta, no “compasso do passo do meu coração”, como diz com muita propriedade a letra de O Surdo, interpretado pela Marrom no disco A Voz do Samba, lançado em 1975.
A convite do Fantástico, naquele ano Alcione foi à Mangueira gravar o clipe da música para o programa dominical da TV Globo. Foi recebida por Dona Zica, minha vó, e Dona Neuma, as grandes damas da Estação Primeira de Mangueira. Descobriu no morro um portal que a conectava direto à ancestralidade que forjara sua alma de mulher forte e seu talento de artista. Para surpresa e encantamento da Marrom, a batida do surdo um continha os ecos de todos os tambores que ouvira ecoar na ousada travessia de sua terra natal até aquele momento. A despeito da geografia, Alcione estava em casa. Mangueira e Maranhão eram o mesmo lugar, uma só Terra da Encantaria.
A amizade com minha vó Zica foi um encontro de almas. Ao longo do tempo, a casa de vovó foi lugar de acolhimento de um ícone da MPB, que agora sonhava em verde e rosa. Mas os sonhos de Alcione não eram exatamente sobre o que ela queria para si; eram sonhos que abrigavam os sonhos de inúmeras crianças que não tinham como realizá-los. As meninas e os meninos da Mangueira sempre foram sua maior ocupação.
Após conhecer e colaborar com os desfiles da escola de samba mirim Império do Futuro, a filha da Terra da Encantaria resolve então criar a Mangueira do Amanhã, escola de samba mirim da Estação Primeira. Seu movimento viria inspirar inúmeras outras agremiações carnavalescas do Rio de Janeiro a fazerem o mesmo. Quase 40 anos depois, mestres-salas, porta-bandeiras, ritmistas, passistas, rainhas de bateria, baianas, intérpretes… muitos e grandes sambistas foram formados na agremiação mirim.
Mas Alcione queria e fez mais. Além de transmitir para as novas gerações os múltiplos saberes contidos no samba enquanto forma de expressão, a Marrom queria que a Mangueira formasse cidadãos. Aquelas crianças que desfilavam precisavam cuidar dos dentes, ter atividades lúdicas e esportivas, educação sexual, noções de cidadania e pertencimento. E assim surge a Vila Olímpica da Mangueira, cuja atuação da Marrom foi decisiva para sua implantação.
A loba maranhense é precursora de um trabalho de empoderamento de corpos pretos e pobres. Principalmente o de meninas e mulheres. Para ela, sonhar é preciso, sempre. O Baile de Debutantes, que proporciona uma festa de 15 anos inesquecível para as meninas do morro, é outra de suas realizações, que transformou em realidade o que parecia inalcançável para tantas famílias pobres do morro.
Definitivamente, ela não é uma qualquer. Alcione é uma mulher, preta e sambista que inspirou outras mulheres, Brasil afora, a serem fortes. Sempre cantando uma mulher ciente de seus desejos, disposta a conquistar e ter voz; uma mulher sempre em evolução ao longo das décadas. Como se não bastasse, com profissionalismo e percurso ímpares, ela conquistou um espaço de referência na Música Popular Brasileira.
E aqui cabe uma lembrança afetiva fundamental na minha própria vida. Em determinada fase da carreira de Alcione, tive a oportunidade de ser backing vocal em alguns shows e gravações. Esse legado hoje eu compartilho na trajetória que iniciei com o grupo Matriarcas do Samba, formado por mim e minhas manas Vera de Jesus e Selma Candeia, que são, respectivamente, neta de Clementina e filha de Candeia.
Mais recentemente, Alcione tem sido a principal artista a colaborar com o Museu do Samba, instituição fundada por mim em 2001, localizado aos pés do Morro de Mangueira. Inicialmente criada para preservar o acervo do meu avô Cartola, surgiu com o nome Centro Cultural Cartola e hoje possui o maior acervo do país sobre a História e a Memória do Samba e dos Sambistas. Obrigado, Alcione, por mais essa frente de luta pela história de nosso povo, pelo não apagamento de nossa memória e pela inclusão aos sambistas, artistas muitas e muitas vezes desamparados cultural e socialmente.
O amor de Alcione pela Mangueira é tão grande que não cabe explicação. Todo o tempo que se seguiu àquele encontro com a Encantaria de Mangueira, lá em 1975, a Marrom esteve sempre nas frentes de batalha, ombro a ombro, com a Verde e Rosa, nas tempestades e bonanças. Seja em shows para angariar recursos para o desfile, seja como madrinha de gerações de crianças que precisavam de acolhimento e apoio para seguir sonhando e transformando a dura realidade.
Alcione é mulher que encara desacato, que mostra a força feminina do samba, que agrega e fortalece todos os segmentos que compõem o principal gênero e manifestação cultural do Brasil. A nossa reverência a esta grandiosa mulher e sambista, essa loba mangueirense que faz jus ao anel de bamba que ela merece usar.
Nilcemar Nogueira
Rio de Janeiro, setembro de 2024
Amar como verbo feminino, transitivo direto, que precisa, necessariamente, de complemento e reciprocidade. É assim que a Rainha do Samba conjuga suas músicas, encorajando gerações de mulheres a se libertarem de relacionamentos abusivos, violentos, e a buscarem igualdade, respeito e prazer em suas relações.
Ao longo de sua trajetória, Alcione tece, com os acordes do samba, um fio comum com mulheres de diferentes tempos e lugares, traduzindo suas dores, denunciando opressões, encontrando palavras e iluminando caminhos para mudanças sociais necessárias.
É assim, por exemplo, em “A Loba”, um de seus grandes sucessos, onde uma mulher se declara apaixonada e fiel, mas avisa que não tolera traição. A canção denuncia que o desvio de caráter masculino, historicamente perdoado por mulheres para proteger a família, não será mais tolerado – poderá, inclusive, ser revidado: “Oh meu rei, a minha lei você tem que saber: sou mulher de te deixar se você me trair. E arranjar um novo amor só pra me distrair. Me balança mas não me destrói, porque chumbo trocado não dói, eu não como na mão de quem brinca com a minha emoção”.
“A Loba” provoca mulheres de todas as gerações a exigirem compromisso e respeito dos seus parceiros com as relações amorosas que constroem, ao mesmo tempo em que educa uma sociedade machista para uma prática responsável do amor.
As canções da Marrom também convidam a uma reflexão sobre o amor-próprio e ajudam a curar feridas de mulheres que saem de relacionamentos abusivos duvidando do seu valor. É assim, por exemplo, em “Mulher Ideal”: “Você não entendeu, você não deu valor. Você desmereceu, minha prova de amor. Mas, se alguém foi vulgar, esse alguém não fui eu. Teu desejo pediu, meu amor atendeu”; em “Palavra de Mulher”: “Você me diz o que quiser, mas ouve o que não quer. Tá combinado assim, eu aprendi a dizer não. E até meu coração, já não diz mais que sim”.
Ou também em “Mulher, e daí?”: “E daí, pouco importa se você se importa. Ou se interessa ou não interessa. É fim de conversa, eu volto pra vida. Que deixei lá fora, na rua”.
O amor cantado por Alcione é também revolucionário à medida em que é retratado como potência e não como fragilidade feminina. Em “Por Ser Mulher”, ela avisa: “Inverto as regras desse jogo, quando eu quiser. Em pleno mar acendo o fogo por ser mulher. Brinquedo meu, segredo nosso. Tudo no amor eu sei que posso.”
Das primeiras canções às criações dos 50 anos de carreira, comemorados em 2024, Alcione, mulher negra e nordestina, faz da sua arte um ato político e social.
Suas obras são agentes para o feminismo, compreendido, na definição de bell hooks, como “movimento para acabar com o sexismo, a exploração sexista e a opressão”. Seu mais recente single, “Marra de Feroz”, é uma canção de repúdio ao machismo, que convoca mulheres a exigirem respeito e não tolerarem qualquer violência. “Você tem que aprender a respeitar uma mulher. Vê se se atualiza, eu não sou uma qualquer. Vai de reto, seu machista que eu também sou confusão. Firma teu ponto, com fogo não se brinca, não”.
A obra se completa com um clipe onde mulheres são acolhidas em uma casa, onde redescobrem juntas sua força e beleza. A cantora reina coberta de dourado, rodeada de potências femininas como Conceição Evaristo, que juntas se cuidam, se abraçam e celebram a sororidade.
“Marra de feroz” é a comprovação do quanto Alcione se mantém inovadora, atual, necessária. Na literalidade das letras, no embalo acolhedor do samba, na riqueza de símbolos comuns e cotidianos, Alcione torna acessível conceitos e definições sobre o feminismo, inclui todas na roda, lembra que amar pressupõe ter coragem – que, na origem latina da palavra, significa ação do coração. E convida a um despertar de consciência e a um movimento de transformação fraterno, alegre, contínuo, revolucionário. Como ela.
Luciana Gondim
Rio de janeiro, janeiro de 2025
O dia era vinte e um de novembro de mil novecentos e quarenta e sete, quando o sol acordou mais cedo para receber aquele pequeno feixe de luz que chegava para iluminar o cenário artístico do planeta. Era uma sexta-feira, na pequena e pacata cidade de São Luís, quando se ouviu os primeiros tons musicais, em forma de choro, afinado, daquela que viria a ser uma Estrela, das mais brilhantes, a cintilar na constelação musical brasileira. Nascia Alcione.
Aparada pelas mãos de Deus, essa mulher de grandioso talento, com um canto firme, bem articulado e de ótima sonoridade, chegava ao mundo com a missão de (en)cantar e escrever seu nome nos anais da música. Esse dever de casa, ela o fez muito bem, com sua voz instrumentalizada e limpa. Tem como nome de pia Alcione Dias Nazareth, a quarta de nove filhos do compositor e maestro João Carlos Dias Nazareth e Felipa Teles Rodrigues, lavadeira de ofício e administradora do lar. Prole que cresce quando do aparecimento de outros nove filhos, todos “produções independentes” do maestro. E assim a vida segue, com a batuta regendo a família Nazareth no “Concerto da Boa Convivência”.
Atravessou sua infância na expectativa de desencantar o Touro Negro; a juventude reunindo forças para enfrentar Ana Jansen e descobrir, por que a Serpente não encontrava a cabeça com o rabo. Foi quando a conheci.
Éramos vizinhos. Eu, na Rua do Passeio; ela, na Rua do Norte, onde nos construímos para enfrentar a vida. De lá para cá, nunca mais separamos os nossos sentimentos de amizade, respeito e admiração mútuos. De nossa cidade, guardamos os mistérios e jamais deixamos de exaltá-la em nossa arte.
O tempo passa e Alcione voa para o Rio de Janeiro em busca do futuro, do sonho de gravar um disco, mesmo que fosse um compacto; de mostrar seu canto, mesmo que fosse em pequenos espaços; de ser alguém na capital brasileira da cultura, sem temer a concorrência e sem pensar que, aquilo que viria, seria bem maior do que esperava. O resultado dessa aventura está aí, na consagração popular, no que diz a crítica especializada, na sua marca de referência, na vitrine permanente que a expõe. Alcione é uma unanimidade positiva.
No Rio, sua trajetória artística começa pelos programas de calouros, agrada, mas não lhe dão espaço. A luta continua. Alcione era um ser de luz, com brilho de Estrela, então, o inevitável acontece: veio com o programa A Grande Chance, a chance que esperava: fez sucesso.
Daí para frente profissionaliza-se, sai para excursionar na América do Sul, cantar na Europa, onde mora por dois anos e na volta ao Brasil grava o seu primeiro disco.
O primeiro grande sucesso foi Não Deixe o Samba Morrer, que pedia socorro para quem agonizava. Logo a seguir vieram muitos tantos, que ela eternizou com sua voz, até chegar A Loba, metamorfose humana das mulheres. Na TV Globo, comandou o programa Alerta Geral, quando deu ao samba o seu verdadeiro lugar de protagonista na MPB e se consagrou como a maior cantora do gênero no país.
Vivas a Marrom! Assim “rebatizada” pelo Coroné Ludugero, humorista brasileiro, durante uma excursão que fizeram juntos pelo nordeste, quando ele solicitava: “Marrom, canta aí uma coisinha romântica para minha Marrom”, apelido da mulher dele. Pronto, estava Alcione de “batistério” novo.
Vale dizer ainda que a Marrom não é somente uma cantora de samba, ritmo que ela traz na alma, desde quando o conheceu pessoalmente na ‘quadra’ da Mangueira e passou a tratá-lo como um amigo íntimo. Já da Estação Primeira, fez um de seus artigos de luxo, indispensável no seu armário de sentimentos. Com um repertório eclético, canta outros gêneros musicais, nacionais e estrangeiros, mas são com as canções românticas que ela mais emociona e foi com elas que começou a caminhar sua estrada.
Nesses seus 50 anos de trabalho, foi agraciada com todas as honrarias que alguém possa merecer. Para citar algumas das principais: 26 Discos de Ouro e sete Discos de Platina; 21 Prêmios da Música Brasileira, de quem foi referência no ano de 2023, e o Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum. Destacam-se ainda títulos honoríficos como a Ordem do Rio Branco, Medalhas Pedro Ernesto e Mérito Timbira, Cidadã Honorífica do município do Rio de Janeiro e Cidadã Soteropolitana.
Os internacionais: Diplome de Médaille d’Or (Société d’Arts, Sciences et Lettres de Paris); Pensador de Marfim (Governo de Angola); A voz Negra da América Latina (UNO). E outros, outros e outros… Desses muitos, que se somados chegam a ser uns quatrocentos, nenhum lhe foi mais importante do que a consagração, o carinho e o respeito do povo, que sempre lotou as centenas de shows que fez pelos palcos da vida e, os recordes de vendas que os seus discos alcançaram.
Mulher guerreira, trabalhadora, amiga, caridosa, empoderada, profissional, amante, inteligente, capaz, presente, amada, cantora, instrumentista… ufa! E que tenho a honra de ser amigo.
Alcione é um Canto de luz.
Augusto Cesar Maia, poeta, cronista e compositor
Outubro de 2024
