Afresco de Outono - Aberta à Visitação Virtual
12–31 dezembro 2020
“Arte é aquilo para o que se precisa simplesmente abrir os olhos.
O homem, no mundo, substitui a fatalidade em ações tão terríveis como a própria fatalidade. No entanto, ele é capaz de superar a fatalidade e a morte com o ato criativo do amor.”
ECI
Ministério do Turismo e Vale apresentam Afresco de Outono. A exposição apresenta 84 telas, do poeta e artista plástico russo, radicado em São Luís, Evgeny Solomonovich Itskovich (Евгений Соломонович Ицкович) – ECI. As obras retratam versos do poema homônimo do artista, escrito em 1983, em Moscou (Rússia).
Por meio do encontro das linguagens artísticas: poesia, pintura, música e dança, envolvidos em uma narrativa que perpassam por transições da natureza e a vida do artista, o público é convidado a refletir sobre si, o ciclo da vida e da natureza.
A direção é de Áurea Maranhão e traz Evgeny Itskovich e Maria Itskovich, filhos de ECI, como performers e músicos.
Texto Curatorial
Mãe, pai, irmão, tios, professores de piano, tomadores de chá, plantas e corpos nus, santos e diabos, vivos e mortos formam o grande retábulo que ilustra o poema Afresco de Outono, de Evgeny Solomonovich Itskovich (ECI). As figura não são daqui! Vieram de fora! São russos! O ambiente, objetos, sujeitos e o delírio atestam o fato. No entanto, de fora, percebemos que a abordagem é íntima. Tudo está dentro, ou vem de dentro, e enquanto espelho, pela diferença e estranhamento, para aqueles que o miram, é um convite de sobrevoo para perceber o que nos une enquanto seres idiossincráticos, diversos e originais. Tudo é estranho e familiar. Aliás, a família guarda em si uma área de sombra, indefinição e prisão, em que o limite intangível do outro é sempre testado e rompido. Famulus – escravo em latim – escravo doméstico, escravo do outro, o outro, sempre espelho.
Os rostos, que vemos, são máscaras festivas, teatrais, funerárias. Pela extemporaneidade, aludem às diversas máscaras que marcaram a história da arte ocidental: os retratos de Fayoum, personagens de Renoir, Ensor, Chagall. Aliás, a exemplo deste último, russo expatriado, a tradução plástica da memória natal revela o movimento de perpetuação do indivíduo deslocado em seu espaço-tempo. As máscaras são um furo: um portal. Inquisidoras, atônitas, debochadas e absurdas, apresentam-se como um espelho de mão-dupla, revelando quem está atrás e na frente delas.
As máscaras, apresentadas em Afresco de Outono, perpetuam os mortos, mesmo daqueles que, ainda vivos, esfumaram-se na construção das memórias. Toda a parafernália está presente no universo onírico, místico e absurdo, construído para a conquista do além, da eternidade e da lembrança. Todo o peso dos objetos e funções que definem os papéis sociais e familiares, gritam: Presente! – e assim, um pedaço da Rússia se naturaliza brasileiro. Ao final de tudo, para a morte, ninguém é russo e somos todos escravos.
As pinturas de ECI chegaram ao Maranhão, juntamente com a família, em 2006. Hoje, integram o acervo do atípico Museu Russo, localizado no centro histórico de São Luís. Embora soe improvável, o universo proposto já é propriedade da cidade, e nesta exposição se aproxima do espectador para cumprimentá-lo. Parece assombrado? De fato. O outro é sempre assombrado, e só é possível trazê-lo à luz quando deixamos que ele more em nós, e ao mesmo tempo moremos nele. Esse é o convite que a catedral explodida dos quadros aqui reunidos nos faz. Diga olá! (Здравствуй!)
Gabriel Gutierrez
diretor e coordenador artístico do CCVM
A Cena
A conversa entre a cena, a performance, a música e a obra pictórica e textual Afresco de Outono, revela a cumplicidade criativa dos membros da família Itskovich, com quem pude trabalhar enquanto diretora. Para a montagem do espetáculo propus a interação direta entre os performers, filhos do artista, o público e as telas que constroem o cenário/instalação. As pinturas são personagens vivos e, com os atores retratados em muitas delas, funcionam como um espelho. A disposição tridimensional convida o público para adentrar o espaço. O texto conduz o jogo cênico e alinhava a relação entre os corpos presentes, a música e as obras.
O pensamento e a língua russa estão presentes por todo processo criativo de montagem. As falas e o canto serão dirigidos ao espectador ora em Português ora em russo, proporcionando uma imersão na sonoridade dessa fala magnífica, que tanto diz sobre aquilo que não pode ser traduzido.
Áurea Maranhão
Evgeny Solomonovich Itskovich
Evgeny Solomonovich Itskovich (Евгений Соломонович Ицкович) – ECI nasceu em 1959 no território da antiga União Soviética, na cidade de Kiev (atual capital da Ucrânia), onde vivia a família de sua mãe. Logo foi levado para Moscou, onde permaneceu até a sua vinda ao Brasil.
Escreveu suas primeiras poesias aos 12 anos. A criatividade de Evgeny preocupava sua mãe, que o levou ao psicólogo para uma consulta. O diagnóstico foi preciso: poeta.
Em paralelo, formou-se médico-socorrista. O amplo estudo da anatomia e fisiologia do corpo humano e o treino de um olhar clínico-diagnóstico tiveram grande impacto em sua arte. Durante este período, participou da expedição arqueológica ao Quersoneso, onde conheceu Liubov Itskovich, com quem se casou após um reencontro ocorrido quatro anos depois.
A partir da década de 1980, o jovem poeta buscou delinear seu espaço artístico através de récitas. Em meio de amigos, em festas e em sua casa, junto a sua esposa, expandiu seu público e foi convidado para declamar suas poesias para audiências cada vez maiores, como teatros, clubes de poesia, na rádio e outros espaços da capital russa.
Em 1995, já na Rússia atual, lançou seu primeiro livro de poesias “Placas do Coração”. Editado por Liubov e ilustrado com gráfica e quadros do seu irmão mais novo Dmitrii Itskovich, o livro foi premiado no concurso nacional Arte do Livro, em 1996, em Moscou.
Para o segundo livro Afresco de Outono, poema escrito em 1983, ECI assumiu o papel de pintar e ilustrar ele mesmo sua obra. Em 2002, ganharam vida suas primeiras telas.
Já em 2005, com o livro praticamente finalizado acontece sua primeira exposição na galeria Asti, em Moscou. Com muitas críticas positivas, parte das obras foram selecionadas para edição do disco-catálogo Artistas plásticos de Moscou 2005. Neste momento, seus filhos Evgeny e Maria já participavam dos recitais poéticos, com interpretações musicais e performances.
Em 2006, o artista realizou sua primeira exposição no Brasil. Intitulada Próximo – Daquele Lado, a mostra foi montada na Galeria Antônio Almeida, no Palacete Gentil Braga, em São Luís. Encantado com a calorosa recepção e com a cidade, ECI resolve mudar com sua família para São Luís, onde fundaram o Espaço Cultural Russo ECI MuseuM, com exposição permanentemente de suas obras.
Dentre os espaços que expuseram seu trabalho plástico estão: Galeria Antônio Almeida, Galeria Fernando P., Museu Histórico e Artístico do Maranhão, entre outros; e em Moscou: Galeria do Kiselev e Galeria Put Edinstiva, instituição muito conceituada na Rússia
por sua filha, Maria Itskovich.
Maria Itskovich
Atriz, cantora, compositora, palhaça, poetisa, dançarina popular, produtora e professora de música, é filha de ECI. Aos 16 anos, mudou-se da capital russa, Moscou, para a cidade de São Luís – MA, Brasil. Formou-se em canto lírico pela EMEM e licenciou-se em Música pela UEMA. É especialista em metodologia e lecionou piano e musicalização na UFMA. Em sua trajetória artística, fez parte da trupe circense Du-nada, grupos de dança popular Tambor do Mestre Amaral e Cacuriá de Dona Teté, Cia. Direto da Fonte, banda de rock Ornitorrincos do Sertão Turu. Apresentou-se em recitais de canto lírico e interpretou Luna nos filmes da franquia Muleque té Doido, recorde do cinema maranhense. Também compôs trilhas para espetáculo Mulheres de Shakespeare, o curta Eu sou Patrimônio e performance Afresco de Outono.
Evgeny Itskovich
Natural de Moscou – Rússia, é pianista e compositor desde 14 anos. Em 2000, entrou no mundo do cinema e do audiovisual, atuando como diretor, roteirista e compositor de trilhas sonoras. É bacharel Cinema e Mestre em direção de cinema e TV, pelo NGUNN de Moscou, Rússia (2005), além de ser licenciado em Música pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA (2016). Em 2006, mudou-se para São Luís – MA, onde dirigiu filmes como: Alma e Corpo (2013), Olhares de Paz (2015), Somos uma só voz, (2017) e contribuiu ativamente com audiovisual no Maranhão, ministrando oficinas e cursos de cinema no festival Maranhão na Tela, na Semana de Teatro do Maranhão e na Semana dos Museus. Compôs e atuou como musicista para as peças Para Uma Avenca Partindo e Amor Obsessivo , da Cia. Teatro do Redentor e está no processo criativo da performance Afresco de Outono como o compositor da trilha musical, pianista e performer.
Entre 2016 e 2018, lecionou no Departamento de Música da Universidade Federal Do Maranhão – UFMA.
É co-fundador e um dos dirigentes do Espaço Cultural Russo ECI – MuseuM.
Atualmente, além de realizar atividades artísticas, leciona música e cinema, e está se especializando em Ensino de Arte e Música pelo Instituto Brasileiro de Formação.
Liubov Itskovich
Russa, nasceu em 3 de setembro de 1958, na cidade de Habarovsk (União Soviética), extremo oriente da Rússia, e aos 9 se mudou para Moscou. É Mestre em Arquitetura de Paisagem, pelo Instituto Tecnológico Florestal de Moscou, especialista em Guia Turística, membro da Fundação Internacional das Artes.
Além de trabalhar no campo de paisagismo, se dedicou a atividades educativas e culturais. Foi diretora do Colégio Particular Filipova, onde desenvolveu concepção educativa, organizando viagens, encontros e eventos culturais.
Idealizou a arte do livro de poesias Placas do Coração, de Evgeny Itskovich com ilustrações de Dmitrii Itskovich, com qual foi premiada no Concurso Nacional de Arte de Livro, no ano de 1995. O conceito do livro buscou aproximar o leitor da poesia, por meio de uma fusão com artes plásticas. Essa concepção impulsionou a criação do próximo livro, Afresco de Outono.
Após a chegada ao Brasil, junto à família, cria o espaço ECI MuseuM, onde coordena e gerencia projetos culturais, educativos e de meio ambiente, além de ministrar aulas da língua russa.
Áurea Maranhão
É atriz, diretora e performer formada na Escola de Arte Dramática EAD/ECA/USP. É atriz pesquisadora do grupo AP43, dirigido por Nara Sarakê, co-fundadora e produtora da Ordinária Companhia, grupo teatral com sede em São Paulo (SP), e sócia da produtora Marafona Blue. Estreou na Rede Globo no papel de Ticiana, na novela A Dona do Pedaço e tem estreia prevista na Netflix, atuando na série Cidade Invisível. Dirigiu o curta metragem Carnavalha, ganhador dos prêmios de melhor filme júri popular e melhor atriz para Áurea Maranhão nos festivais Maranhão na Tela e Guarnicê, e melhor filme Maranhense no troféu ABD 2017.
Afrescos de Outono
Evgeny Solomonovich Itskovich
Performance Afresco de Outono
Direção: Áurea Maranhão
Performers e Músicos: Evgeny Itskovich e Maria Itskovich
Expografia
Gabriel Gutierrez
Iluminação
Calu Zabel
Comunicação Visual
Fábio Prata, Flávia Nalon e Gabriela Luchetta (PS.2)
Produção
Deyla Rabelo
Edízio Moura
Pablo Adriano
Marcos Ferreira
Samara Regina
Fotografia
Clarissa Vieira
Cenotecnia
Edson Santos
Montagem
Diones Caldas
Fábio Nunes Pereira
Marcos Ferreira
Pintura
Gilvan Brito
Elétrica
Jozenilson Leal

Direção e Coordenação Artística
Gabriel Gutierrez
Assistência de Direção
Deyla Rabelo
Coordenação do Programa Educativo
Ubiratã Trindade
Educadores
Alcenilton Valério Correa Reis Junior
Erick Araújo
Maeleide Moraes Lopes
Comunicação
Clarissa Vieira
Giselle Bossard
Coordenação de Produção
Edízio Moura
Produção
Marcos Ferreira
Pablo Adriano Silva Santos
Samara Regina
Coordenação do Financeiro e Administrativo
Ana Beatris Silva (Em Conta)
Financeiro
Tayane Inojosa
Administrativo
Ana Célia Freitas Santos
Recepção
Adiel Lopes
Jaqueline Ponçadilha
José de Ribamar Pinheiro Ferreira
Estagiários do Programa Educativo
Amanda Everton
Gabriel dos Anjos Costa
Guilherme Castro
Zeladoria
Fábio Rabelo
Kaciane Costa Marques
Luzineth Nascimento Rodrigues
Manutenção
Yves Motta (supervisão geral)
Gilvan Brito
Josenilson Leal
Segurança
Charles Rodrigues
Izaías Souza Silva
Raimundo Bastos
Victor Silva

Diretor – Presidente
Hugo Barreto
Gerência de Educação e Cultura
Flávia Constant
Camila Abud
Juliana Alves
_________________
Galeria Virtual
I
1
Eu não sei – eis a razão
De que o dia é mais escuro que a noite,
Eu não sei – eis o sentido,
E linhas da vida não atendem
A minha memória volumosa.

2
Eu não sei viver sem a fé,
Eu não consigo sem amor.
Para alma – natureza da dúvida é oposta,
Eu amo amor.

3
Eu – sou a negação do bem comum
Se for para viver com o bom senso,
Se for para não habituar-se a vida,
Mas ser o olívio da chuva!

4
Será que olhas para encosta tesa
Ou se mergulhas de cabeça
Nos redemoinhos densos da reflexão:
Não tem estrada – só há chuva.

5
A chuva se extinguia… os cordéis estavam pendurados,
Giravam-se as rodas de moinho, e a umidade
Como gaze de verão caía
Em arbustos encharcados por traz da casa,
No frio da calha, já o jardim
Ficava em meias-palavras
Entre a água e o crepúsculo. Os frutos
Se estendiam pelas macieiras,
Avermelhavam-se nas cerejeiras
E se arrastavam lentamente pelas pereiras

6
E lá atrás dos arbustos, onde pendurada.
Estava a gaze úmida e rija do vento,
Atrás das rédeas do céu começava o barulho
A água derramava pelo salto desdenhoso
Pelo icor de argila e pelo sangue
De raízes tesas, estendidas para o rio.

7
A correnteza arrastava o cascalho ensopado,
Ensaboando com espuma as encostas,
E as raízes curvavam suas juntas finas,
Se deslizavam e se aferravam ao despenhadeiro,
E nas raízes se embalava a espuma,
Como farrapos da barba do outro ano

8
Assim verão se despedia da crença passada,
Assim começava a vida penumbrosa.
E não se percebia – de onde demora,
E para onde corre rio inchado,
Mas beira que era próxima se parecia com a beira distante.

9
E os reflexos moinheiros da penumbra
Giravam o turbilhão, e o outono
Saía súbito como as cobras negras
Para as roturas trincadas do horizonte.

10
Na encosta, no desarranjo pesqueiro das redes
Arrastava a vida uma barraca,
Como um cachorro velho e sua casinha
Ela unia simultaneamente
O abrigo, a corda e a vista triste.
E por isso a água lhe acariciava,
E se aproximando das janelas baixas
Olhava para os cogumelos secos,
Para atados de lenha, para brinquedos infantis,
Para corcunda-bicicleta quebrada.

11
Como bom, talvez, foi no verão,
Aqui entrar, e vasculhar as coisas velhas,
Sem remover a teia das mãos,
E sentir como ao coração se aproxima
Ternura espinhosa da lágrima outonal.

12
Para onde, há quanto tempo, com este objeto
Brincava a sombra da aparência passada;
Quanto há nele de tristeza quebrada
Se pudesse viver!.. Mas os netos, os netos não querem.
E o fio desenrolado da vara de pescar
E os grãos pedregosos de chumbo
Lançam no pântano da vida passada
A boia brilhante de hoje.

13
Assim a umidade penetrava no cordão umbilical
Do outono recém-nascido. Ainda…
Ainda era agosto, mas a chuva outonal
Já pairava por cima do horizonte como uma cunha cinza
Com o rosto envolto, e o dia cinzento
Já empunhava o tinteiro e a caneta
Para pegar a tinta e digitar
As caligrafias noturnas na paisagem sombria.

14
A casa se aproxima. Mal afastar os ramos,
A água escorre pelos cabelos molhados,
As mãos tocam no vidro,
Como os peixes tocam nas transparentes
Grandes portas do aquário da terra
Para encontrar atrás de uma cortina branca
O mundo silencioso e sombrio.

15
Assim, ao penetrar a alma, o olhar sonolento
Talvez enxergasse todos, como se vê um sonho –
Debaixo do teto… ali no chão todos andando
Ou sentados, mas, contudo, vivendo
Suas vidas inferiores do além.
Eles vivem e aquecem o bule,
Põem os pratos, os garfos, as colheres,
Trazem batatas no caldeirão escuro.
E você está com saudade do voo,
Da sua leveza da realidade sonolenta
Para cair na teia da casa
E lá tremer com o suspiro ensonado:
“Estou com vocês! Me espere! Ainda estou aqui!”

16
Balançavam os pinheiros, a floresta ao redor,
Talvez, sobrevivesse à casa velha,
Como o oceano sobrevive à terra firme,
E como a terra sobrevive à vida.

17
Tocava rasgadamente o piano,
E os sons, domados pelos dedos,
Viviam longamente na consciência submersa
E descobriam a nova era
Para os olhos abertos que nada enxergão.

18
Lá da janela, atirados ao vidro,
Os que arruinaram-se ao temporal,
Aqueles que acabaram em encrenca tempestuosa,
Eles lacrimejavam e acompanhavam chuva,
E continuavam a música do penhasco,
Diferindo-o na margem plana,
Quando ele atingia as águas profundas.

19
Ouvia-se descida da água para o rio,
E abrindo-se ao longe,
Estava vista do dilúvio repetido,
Que não trazia em se a arca, mas talvez,
Aquela próxima igreja de madeira,
Que com sua abóboda-cebola preta,
Mais elevava a alma
Do que erguia os olhos para cima

20
Pelas ondas passavam os barcos,
Arrastavam os remos largados,
Arrastavam se mesmo… com cada metro
Suas correntes, arrancadas pelo vento,
Oscilavam lentamente atrás.

21
Assim o agosto inundava a esperança –
Sobre verão, sobre aparição de Deus.
Assim o agosto derramava a esperança,
De que predestinado a nós neste verão aparição de Deus,
O que cedo demais nós esperávamos na primavera,
E então agora até o Natal
Nós meramente ficaremos no mundo.

II
22
Oh essa primavera – solipsismo eterno,
Eterna autoconsternação.
A escolástica do vivo – viver e existir.

23
Pela eterna atração da vida à existência
Floriam os solários e floresciam,
Todos queriam com tecidos do desejo
Se parecer com as grandes bardanas −
Como é bom, como macio, quanto calor!
24.
A Natureza se aproximava da amarelidez,
Como ao apogeu da liberdade ensolarada,
E é por isso o desejo de ser fofo
Não confirmava rigoroso tom
Das estáveis interjeições primaveris.

25
Não é o rigor dos sentimentos, mas o rigor da conduta,
Que determina o traçado e o zênite.
26
Então, solários, os afogados do sol,
Que querem do outono? Lá vem a primavera!

27
Todos falavam sobre desfile de estrelas,
Sobre florescimento impetuoso, indomável,
E nós olhávamos as inflorescências amarelas,
E luz amarela em busca da liberdade
Em um distante solar da vida, da terra,
Iluminava tanto os nossos sentidos,
Que eu não reconhecia coisas habituais,
Eu perguntava: “Que flores são essas?”
Tu respondias: “É tudo urtiga.”
Nós erguíamos as cabeças, e em cima,
Parecia que cor amarela mudava para cor ardente-azul.
Eu te dizia: “As cerejeiras
Vão ter tantos filhos – tanta prole!”
Você, calada e confusa, beijava minha palma,
E repetia nos lábios: “Espera, as maçãs, elas irão amadurecer.
Eu vou com as maçãs fazer o bolo”.
E nós sonhávamos, que vai ter tanto delas,
Que os preços cairão, e para nós
Será suficiente até mesmo um desejo
Para comprar tanto ameixas como flores.
Eu já segurava a pera na minha mão
E sentia beijo tão florido
Como um fruto suculento e maduro.

28
Assim nós dividíamos a luz em partes do mundo,
Em partes da palavra – de onde é a luz.

29
Da folhagem nasciam sobras coloridas,
E em teu rosto se refletiam:
Ora arvoredo distante dos olhos,
Ora jardim choroso, ora abelha, ora mosca,
E perante os olhos subiam nuvens,
Dos lábios soltavam passarinhos
E silenciosamente voavam sobre mim.

30
De onde é essa tristeza, de onde são as lágrimas,
De onde é o lago no vale solar?
Eu vou secá-lo, eu vou ser o Sol,
Eu vou plantar amendoeiras em flor.

31
– Bem sabes, as arvores chegam a morrer,
Quando florescem tão impacientes,
Elas não podem sobreviver à natureza
Do seu amor perfeito e solar.
Irão morrer, e na terra desértica
Apenas restará posteridade etérea
As flores pálidas e murchas,
E as folhas encobrindo os rostos
Dos habitantes em luto do lodo sem vida.

32
E eu pensei: “Bem, agora na primavera
Nós esperamos o fim da alegria de florescimento,
Mas se estamos destinados a morrer no outono,
Ao fazer colheita, nós encontraremos Deus,
Isso não é maravilhoso?!
Pois nós o veremos ao lado da vida
Não esquecendo de si mesmo,
Ainda com os corpos próximos das almas transparentes.
Como Ele vai olhar?
Com nossa beleza como vai se fundir?
Será que estará sozinho ou precedido por elementos?
Nós chamamos de caos o terrestre
Mas Ele, transparente, nos dará a luz”.

33
Assim reconhecendo a natureza morta
E o aparecimento alegre de Deus,
Gritei alegremente: “Estás comigo!”

34
E nós decidimos – por que não é agora,
Não agora, como neste verão,
Epifania espera o mundo.

35
Os sofismos da vida – a vida e a existência.
O que nós entendemos sob o sofismo?
O círculo espaçoso em que toda a circunferência
Se torna um único ponto central
Com o reflexo ótico e espelhado.

III
36
Sempre este verão, sempre ele murmurando
Sobre remanescias passadas da primavera,
O que é para nós a primavera?
Pelo visto, não é nada,
Apenas um “te amo” sem pressa,
Apenas “amo…” e, como da vida passada,
Surge nos céus um anseio
E descansa na terra o deleite.
Tal remanescente inesquecível,
Que até própria vida não soube mudá-lo,
Com a timidez ingênua ela olha pro alto
E diz: “Quem, quem já amou assim?!”

37
Todos saiam num comboio de câmara
Para reinado sinfônico da natureza,
Os violinos falhavam, exprimindo os sons
Dignos para o céu em trovoadas,
O verão preenchia o vazio
Dentro das figuras na clareira solar.
E esboçava retratos pontilistas
Das moscas e besouros, assim como pessoas.

38
Como no conto de fadas surgia samobranka –
Uma toalha mágica que por se própria
Criava um piquenique despretensioso,
E refeição partilhavam, cheios de ar,
Corpos esculpidos pelo verão.

39
Quando os olhos examinam caule,
E a visão distingue o cordão umbilical
E os capilares das folhas virgens
Nasce a vontade de inspirar
Clareiras entre os ramos inclinados,
E gozar o calor pleno
Da estreiteza do mundo em aproximação,
Em que o sensível dá a luz à longitude
E a sensação da felicidade − é a eternidade.

40
Ficar assim deitado entre os seus parentes,
E apreciar a festa do almoço,
Ou inalar vapores resinosos
Para que o aroma do chá quente
Se una às flores desabrochadas
E chegue à ponta da língua…
Será que não é a preocupação em criar
Do caos primitivo – o terrestre?
Será que não é uma preocupação perante Deus
Sobre a atração eterna dele?
Como está profunda a sensação terrestre,
Ao saltar da clareira florestal
Subitamente pairar e caminhar sobre as flores,
Sem amassar os talos para os Céus!
Esta imagem invertida e doce
Em nós provoca as vertigens
Na hora do meio dia quando os céus
Olham em domínio na terra com afago.

41
Mas é verão, todo ele calmo,
De noitinha as cigarras cansam
E transformam o resplendor numa cintilação,
Fazendo adormecer a saudade doce…
E a felicidade devaneia congela.

IV
42
Oh, caro agosto! Como te desenham!
Contorno delicado com pescoço de cisne,
Cabelo louro com borboleta branca.
Quando as flores não te emocionam,
Tu te aprofundas em algum ramalhete
Da lua e da noite, do mar ou dos olhos.
Tu, tremulante, mas tu és ainda assim calmo,
Tu – lua cheia de verão, tu… sem palavras,
E como tens demasiadamente sons,
Tu – a espera da voz, tu – tristeza.
Sim, a tristeza, ó meu agosto sereno e materno,
Meu lar, meu limite terrestre.

43
A tristeza da despedida é a mesma do encontro…
Deixando o meio dia e recebendo…
Para te as horas são destinadas com cautela,
E ainda assim, pelo visto, só até a primeira metade,
Depois de lá, nós restara apenas o outono.

44
Outono, como uma droga, descia dos telhados,
Chamava cerimônias do tempo chuvoso,
E terra turva e peneirada
Acrescentava ao agosto. A cor da semana
Lembrava uma estrada acima do penhasco –
Predominando a argila e o pastel,
E tudo se juntava num nítido temporal.
Das janelas se abria uma perspectiva,
Mas perspectiva de outono – a vastidão
Deitava como uma predição macabra
Da agitação, num todo, vã.
Aqui não havia nem sequer um limite,
Estava aqui só o setembro recém-aparecido,
E nem mais dava a vontade de desenhar
As cobertas deslizantes dos barcos cargueiros,
Mas o que fazer, tinha que viver.

45
Vinha mais frio, o tempo vagueava,
Como navalha de manhã antes de fazer a barba,
Sem deixar chances para as horas
Ou os minutos do lazer tranquilo,
Tudo que quente teve que bater em retirada,
Mais afastado da natureza, mais em casa.

46
Achávamos o festejo tão alegre
No peitoril cantava costumeiramente
Pássaro feliz, a tão querida lenha
Coloriu o fogo em ultramarino
E na varanda o “samovar” antigo
Cumpria seu trabalho com todo o rigor.

47
Estava posta a mesa, mas demorávamos a ter pressa,
Saboreando esperança certa
E o pressentimento dos bolos doces.
Assim que os pires coincidiam enfim
Com a imagem ávida do rosto
Nos deleitávamos com a ressonância da calma
E com o ar do doce de framboesa.
Então sentávamos todos solenes,
Conforme o sexo e a idade –
Com o jornal, com o livro, ou simplesmente na modorra…
E escutávamos como as gotas do telhado pelo vidro
Trombando os dedos, batucava a chuva.

48
Corriam as gotas, tudo virava acinzentado,
O vidro mudava cor para tragicamente-triste
As crianças discutiam – qual dessas lágrimas
Será a primeira alegria delas, e qual
Ao entregar o calor, derramará no vidro.

49
Os velhos não discutiam, eles
Já lacrimejavam um outono diferente
E talvez pensavam no destino,
Nos brinquedos de corda infantis
Nos carrinhos hábeis, no relógio –
Como é difícil os poupar, e como em breve
Já não dará para reconhecê-los, que tudo mudará a cor…
Se pudesse viver, se pudesse não partir!..

50
À noite, inclinados sobre a mesa,
Jogavam rebus e charadas brancas,
Corriam da lâmpada de querosene
As sombras chinesas aprendidas,
Ao nomear seu objeto com uma dica,
Eles inspiravam outras imagens,
Eles subjugavam-se às regras da chuva.

51
Nós esperávamos em vida abafada
Batuque chamador cadenciado do destino,
Fechávamos a porta, todo tempo medo…
De repente alguém olhou para janela…
Todos riram –
Não, de novo não é Ele.

52
Do outro lado da janela, balançando as folhas
Respirava o mês de setembro, e adentrava em outono,
Ele conduzia o olhar reflexivo
Da estreiteza do penhasco à proximidade do agosto,
Às horas de lazer, ao verão do ângulos,
Onde o fel solar é amargo e voluptuoso,
Onde por baixo das folhas a sombra é cruel,
Mas o coração é cheio de folhagem terna.

53
Aqui são descobertos os palpitos da natureza,
Os que a cidade distante desconhece,
Pois vegeta nas ruínas obscuras,
Nela as janelas estão acesas e elas – amedrontam.
Toda a vida se amontoa em discórdias mesquinhas
E para a longitude, a latitude não bastará.

54
Mas logo está a cidade. Os vidros urbanos
Não refratam o espaço com entardecer –
Eles amaldiçoam e invocam o abismo,
Eles carregam a culpa de irreflexão.
Lá, mergulhados em brigas mesquinhas,
Ali não vão fundir-se o coração à natureza,
E assim na madrugada do barulho urbano
Surgirão harmônicos “Estou cansado”.

55
Assim, a frequência das avaliações e objetos
Dentro de nós não considera a constância,
Em perseguição das vaidades mundanas,
Atrás das substâncias de ideias de varejo
A vida se desperta em pretensão do sucesso
E esta vida é insignificante – eis o preço!

56
Mas em agosto há tanta plenitude
Dos ovais tortos e curvas flexíveis,
Que este mês só é pensável fora dos limites,
Depois da rua alastrada pelo campo
Ou no jardim ou ao entardecer,
Onde a borboleta, que aguardou a escuridão
Parece uma flor em movimento.
O olho de pavão já não a vê,
Mas veem as asas, e estas levam.
Quando de repente esbarra-se no temporal,
Por cima do despenhadeiro se eleva a barreira,
Que separou o vale do abismo,
E as folhas brancas nas palmas convexas da mão
Representam os manifestos de renúncia –
Se cala a voz e a noite cai.

V
57
Como é doce o Teu nome!
Como é bom estar Contigo!
Como ilumina amar!
A alma cintila! Senhor! Como é bom!
Aceita o peregrino à Tua sombra!
Cuida dos meus entes queridos e próximos!
Eu amo a Ti!

VI
58
A essência do autor reside na presença da chuva.
A chuva é o moinho.

59
Nós saíamos em cobertas sombrias,
Com os chinelos noturnos para a lama de seda.
Os ásteres passeavam no jardim, estava úmido.
Do tremor inanimado da chuva
Nasciam as borboletas, e o resplendor nascia,
Morria apenas o sentimento da novidade
Dos espantos azulado-solares
Das clarezas da noite e das clarezas do dia.

60
O feno úmido apodrecia próximo da casa
E abafava com o seu cheiro
O aroma natural do elemento veraneio,
A fragrância de mariposas lácteas,
Lembrava aos frutos em amadurecimento
Sobre a vanidade do florescimento terrestre.

61
No fim das contas, o outono também tem o seu maio,
Mas este é percorrido pelos mananciais úmidos de cogumelos.
É carregado de cuidados com os frutos,
Com os filhos crescidos, com os estudos,
No seu ventre está velhice – ele é um velho.
E não bastarão as amarguras humanas
Para pegar um fôlego na véspera do inverno.
Por isso que adoecemos e definhamos,
Nós não conseguimos tempo para respirar no verão,
Mas como conseguir – segui-lo é impossível.

62
As alamedas saiam na vertical
Da escuridão dos espantos para o jardim veraneio,
Onde o outono conseguia traçar
Os seus direitos pelo privilégio de douradura,
Onde prateavam os arbustos molhados,
Onde esperavam as rãs pré-históricas
O seu destino mudo e o vazio demorado.

63
E quando nós saíamos pela porteira,
A trilha se transformava em uma via −
Em uma teia destroçada pelo temporal.

64
Nós subíamos cada vez mais alto, mais próximo a igreja,
Deitavam os cruzamentos desabrochados –
As cruzes do outono descoberto.
Tremiam os galhos, a luz atravessava
A abóboda molhada como num epílogo apropriado,
A estrada serpenteava-se, como uma estrada,
E carregava lama enrugada em toda sua extensão.

65
Quando o vento tencionava as articulações,
Eriçando as nuvens e juntando os troncos,
No céu de palha brotava
Um broto radioso da abóboda cebola da igreja,
E nós ficávamos em pé calados no penhasco
À espera das convulsões da chuva.

66
Era tão longe para nós mesmo até o objetivo próximo,
Nossa nostalgia de sentimentos mudava para o sentido
E passava o tempo por cima da estrada.

67
A chuva se extinguia. E era tudo mesma tarde,
Apenas se dissipava a neblina.
O jardim se preparava para sair de casa…
Ele partia, e casa se transformava
Na uniformidade do apartamento urbano
E na vereda da memória. Depois
Ela se apagará. Marejava sobre as malas…
A borboleta, juntando seu olho de pavão,
Esperava sem pressa temporal.
E em cima da caixa rígida da porta
Tudo passava – as nuvens, as folhas, a vida.

68
A respiração se acalmou e como vapor
Permaneceu na neblina de âmbar
Sobre a vereda dos dias marrons
De argila amolecida e de água,
Para onde corpo luminoso pousava
Os seus extremos na beira do temporal.
E do encontro acinzentado nascia
A madrepérola cinzenta e soturna.

69
Logo se esquecia tudo que houve –
A estrada em crateras de chuva,
O piano de cauda com a costa rachada,
Quando obscuro e melancolicamente
Tocavam em conjugações negras
O noturno “Para peregrinação da chuva”.

70
Então anoitecia. Ainda não sabíamos
Que esta opacidade e o verão –
Era o mesmo. Na parede
Eles retratavam-se apagados
Sob a coberta apagada próximo de Deus,
Outono de cordéis pesqueiros e de temporal,
Os esperava perto. Aqui está
O mandamento cego da paisagem –
O barco inclinado em olhar pré-eterno,
Sobre colina iluminada
Cúpula nos conhecida, ao lado cruz,
Guia do Evangelho,
O profeta calmo no campo amarelo,
E da douradura transparente – como se erguesse arco-íris.


